Na contramão de tudo o que nos cerca, há aqueles que ainda no século XXI acreditam que a Terra é plana. São os terraplanistas.
Recusam assim a possibilidade de estarem sendo enganados pelos modelos digitais abstratos que, ao lhes fazerem ver o que a olho nu não vêm, podem lhes enganar e lhes levar a acreditar em qualquer coisa. Se aquilo que enxergam se expressa por uma superfície plana, logo a Terra é plana.
Rejeitando a ciência e os cientistas, estas narrativas hipersimplificadoras explicam a complexidade do mundo tão evidenciada em tempos de incerteza por intermédio da entronização da opinião própria acima de tudo. Sua fonte principal de pesquisa são os depoimentos pessoais postados nas redes sociais, que, viralizando, assumem o lugar da verdade, desprezando quaisquer argumentos que os contradigam.
Cada elemento desta rede de informações se apoia em uma fake news. Mas em seu conjunto constroem um todo ordenado que tem sua lógica interna e representa uma visão de mundo tomada de certezas. Como toda a mentira, em sua absoluta exigência de coerência e certezas, não há lugar para qualquer dúvida ou questionamento. Acreditam que apenas apresentam uma verdade objetivada.
Mas tal processo não se esgota na construção de uma realidade paralela, ele tem também um método. Sua fonte bibliográfica são as redes sociais.
Hoje, para entendermos a maneira que o Brasil está enfrentando a pandemia do novo coronavírus, teremos que mergulhar em um Brasil paralelo, só para os terraplanistas. Nele, por exemplo, ‘a ideologia de gênero é uma estratégia que pretende tornar nossas crianças homossexuais’
[1]. Ou ainda, segundo nosso Ministro das Relações Exteriores, a decretação da pandemia pela OMS está ‘disfarçadamente a serviço da implantação do comunismo no mundo’
[2], na medida que sugere adoção de práticas colaborativas. Da mesma forma, não são tomadas em consideração quaisquer pesquisas recentes desaconselhando a adoção indiscriminada da cloroquina para o tratamento da Covid-19. Por esta razão, por se tratar de uma ‘gripezinha’
[3] – insistem os terraplanistas
– o número de mortes pela pandemia não representa nenhum aumento significativo ao número de mortes dos anos anteriores. Prosseguem argumentando que, se aumento há, isto se deve à ação daqueles que, interessados no aumento do número de mortos a fim de desacreditar e logo desestabilizar o governo federal, ‘estão enterrando os caixões com pedras dentro’
[4]. Ainda mais, as pessoas não morrem de Covid-19 e, sim, de outras doenças, mas... médicos desejosos de inflar os números para prejudicar o desempenho do atual governo ‘fraudam as certidões de óbito’
[5].
E, claro, me permitam uma ironia, o Brasil somente atravessará uma crise econômica com repercussões violentas quanto ao desemprego por conta da sabotagem que visa desestabilizar o governo federal. Por esta razão, o presidente, cioso de suas funções e visando proteger o povo brasileiro, não se cansa de advertir que ele não aceitará jogarem em seu colo o resultado desta crise. Por ele, o país não pararia. A estratégia do isolamento social, recomendada para o mundo todo pela OMS, para nada serve, a não ser para boicotar seu governo e gerar uma grave crise econômica. Sendo assim, apesar das recomendações de seu próprio Ministério da Saúde, o presidente do Brasil sai às ruas sem máscara, promove aglomerações e aperta a mão dos que se põem em seu caminho.
O fato de que toda a Europa parou, de que todas as Américas pararam, assim como um bom naco da Ásia, nada disso é mencionado. Para os terraplanistas, a realidade paralela do Brasil não se encontra com os outros mundos igualmente paralelos.
A forma como respondem aos questionamentos causa desconcerto e desorientação. Tomados por certezas, não há diálogo possível. Para os terraplanistas, trata-se de uma guerra. Contra-argumentos são armas letais, porque no universo polarizado onde vivem, é preciso provar que o mundo que afirmam existir, não existe. Trata-se de ter que provar que eles estão mentindo. Logo toda conversa assume contornos de disputas morais de vida ou morte.
Esta semana, no dia 15 de maio, caiu o segundo Ministro da Saúde do Brasil durante os meses de pandemia. Ocupou a pasta por 28 dias! O motivo: o presidente do Brasil acredita que a cloroquina seja a melhor indicação para prevenção e casos leves da Covid-19, o que, segundo sua opinião leiga, seria suficiente para impedir que a pandemia
– diga-se de passagem, qualificada por ele como uma ‘gripezinha’
– se propague em nosso país. O então ministro, médico de formação, diante das recentes pesquisas que contradizem a ‘tese’ do presidente, se recusou a assinar um protocolo em que libera o uso indiscriminado da cloroquina. Pela mesma razão, o ministro anterior foi exonerado.
Assim caminha o país paralelo inventado pelos terraplanistas.
Se a travessia da crise sanitária provocada pela pandemia tem consequências humanitárias, sociais e econômicas já tão graves, exigindo enormes esforços de toda ordem à população, atravessá-la correndo o risco da ruptura do laço social, acrescenta doses de medo, insegurança e incerteza ao que está marcado pelo medo, pela insegurança e pela incerteza.
A psicanálise ajudou a subverter a ordem do mundo ao propor que o homem não era senhor em sua própria casa. Algo de seu próprio funcionamento escapava à sua consciência e determinava um conjunto de ações e sentimentos. Freud nomeou o capítulo sétimo de sua Interpretação de Sonhos de ‘A Psicologia dos Processos Oníricos’. Ou seja, mesmo exilado em um mundo que ignora a consciência, os processos oníricos têm uma psicologia.
Grande parte da subversão se deve ao fato de romper com uma longa tradição de pensamento que se apoia na lógica da não contradição, isto é, uma coisa não pode ser ela mesma e seu oposto: ou ela é ou não é. Hoje aceitamos que em nossos sonhos esta possibilidade se realiza.
Mas só nos sonhos, ou na loucura....
Seria uma loucura acreditar que todo processo de entendimento admita esta contradição?
O principal problema contido frente ao trágico desta pergunta, nos é formulado por Edgar Morin em
Introdução ao Pensamento Complexo e retomado (para nós psicanalistas) por Andre Green em
Desafios da psicanálise na aurora do seculo XXI. Afirma Morin: ‘É [preciso] tomar consciência da patologia contemporânea do pensamento’. Mais ainda, o filósofo insiste em seu texto no fato de que ‘a patologia moderna da mente está na hipersimplificação que não deixa ver a complexidade do real. [...] A doença da teoria está no doutrinamento e no dogmatismo, que fecham a teoria nela mesma e a enrijecem’.
É isso que nos diz respeito. Nós, os psicanalistas, a fim de mantermos o vigor de nossas teorias, impedindo assim o risco de engessamento de nossa prática, estamos constantemente sendo chamados para livrar a psicanálise da psicanálise para a psicanálise.
[1] Pronunciamento do presidente em 19 de setembro de 2019.
[2] Blog do ministro em 22 de abril de 2020.
[3] Pronunciamento do presidente em 24 de março de 2020.
[4] Denunciado como fake news em 30 de abril de 2020.
[5] Denunciado como fake news em 14 de maio de 2020.