Tantas Primeiras Vezes

Stefano Bolognini
 

Como analistas, sabemos que na vida psíquica o conceito de “primeira vez” requer uma atenção complexa e deve ser tratado com um grau de avaliação flutuante: o que pode parecer (e objetivamente ser)...

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Esta é a primeira vez que a Psychoanalysis. Today se apresenta aos seus leitores, e os editores gentilmente me solicitaram que escrevesse um dos artigos inaugurais, contribuição esta que estou encantado em oferecer.

Isto é para mim uma honra, um prazer e ao mesmo tempo um desafio, uma vez que o tema proposto para esta primeira edição não se trata de algo usual nem tampouco acadêmico.

Como analistas, sabemos que na vida psíquica o conceito de “primeira vez” requer uma atenção complexa e deve ser tratado com um grau de avaliação flutuante: o que pode parecer (e objetivamente ser) previamente desconhecido para os níveis de consciência da parte central do ego , pode não ser assim desconhecido em outras partes do sujeito, e vice versa.

Aquilo que o paciente nos conta é de fato e verdadeiramente uma “primeira vez”? Qual a medida e em que nível interno isto seria verdadeiro? Muitas situações, por exemplo, que são reconhecidas na realidade externa como “primeira vez” podem ser vividas como equivalentes ao nascimento e reverberar como tal- de maneira positiva e negativa- profundamente dentro de nós.; um individuo pode não intencionalmente repetir algo por ele esquecido, enquanto pode conscientemente acreditar ser a primeira vez que vivencia tal situação: Isto pode ser verdade do ponto de vista histórico, mas não o é internamente ou em outros níveis de experiência.

Resumindo, a questão que todo analista deve se propor quando diante à uma “ primeira vez” é: será esta de fato a primeira vez...?

O contraste, então, entre a atemporalidade do inconsciente e a temporalidade do processo secundário pode tornar difícil a distinção entre primeiras vezes “reais” (“primeira” temporal e historicamente) e “verdadeiras” primeiras vezes (estas em todos os níveis internos); podemos pensar que não seja acidental que os dois conceitos em italiano “ tempo” ( “tiempo” em espanhol, “ temps” em francês, “zeit” em alemão) e “ volta” ( “ vez” em espanhol, “ fois” em francês, “ mal” em alemão) sejam ambos expressados utilizando- se da mesma palavra em inglês: tempo.

Olhando a partir de uma diferente perspectiva, um olhar pré concebido com pouca dose de questionamento, pode nos levar, como analistas, a imaginar uma repetição neurótica onde na verdade seria mais acurado falar em “recorrência”, não necessariamente associado ao patológico ou mesmo a mecanismos da pulsão de morte: um certo nível de repressão é fisiológico e propicia recorrências ocasionais ( em muitos tratamentos, certas datas significativas são lembradas e vividas primeiro pelo inconsciente para, em seguida, emergirem à consciência.) Em outros casos podemos até registrar sinais positivos de uma “ redescoberta” profunda ( Bolognini,2006), um desenvolvimento sem dúvida vital na relação entre o Self e o objeto, na qual o indivíduo, não obstante, realiza um registro consciente como de uma “primeira vez”.

Este é o caso de relações amorosas nas quais a qualidade do que se é vivenciado é radicalmente diferente de “vezes” anteriores: podem se assemelhar do ponto de vista dos acontecimentos externos ( namoro, beijo, relações sexuais), mas a eles lhes falta a redescoberta da relação com um profundo e poderoso objeto libidinoso e afetivo como aquele dos objetos originários.

De qualquer modo é fácil de observar em geral como as pessoas revelam seus estilo pessoal e aptidões caracterológicas básicas quando confrontadas com a maioria das experiências de “primeiras vezes”: com exceção de casos de uma predominância excessiva de eventos externos, há pessoas que tendem a dramatizar qualquer evento não previsto , e outras que conseguem manter uma boa relação de equilíbrio e um contato com o mundo interno de maneira integrada mesmo quando deparados com acontecimentos completamente fora do previsto.

Cenários do mundo interno, ansiedades subjacentes , recursos vitais e fé na relação com o objeto, um arsenal narcisista saudável ou insuficiente e patológico, temperamentos e estilos de personalidade, tudo isto desempenham um determinante papel na forma como um indivíduo reage quando diante de algo novo.

O segundo aspecto que eu gostaria de considerar, diz respeito a mais comum das defesas com a qual, em análise ( mas também na vida), as vivências inaugurais de principiantes inexperientes são reportadas e descritas ao interlocutor e para si mesmos.

Muito frequentemente histórias de “primeiras vezes” são na verdade defensivamente idealizadas, superficiais e em sua maior parte não refletem a complexidade real da situação ou mesmo seus aspectos subjetivos: a tendência é dizer ( ou dizer a si mesmo ) uma versão simplificada, maquiada, e “ cor- de- rosa” , principalmente para construir uma auto-imagem de segurança, determinação e sucesso.

Em retrospectiva, descrevendo suas próprias “primeiras vezes”, com frequência o narrador tende a esconder, por motivos óbvios de cunho narcisista, as dificuldades e adversidades sofridas nestas situações inaugurais, sejam quais forem: isto é verdade para a grande parte dos temas clássicos: o primeiro encontro sexual ( o qual é geralmente mencionado com um ar presunçoso e triunfante, ou com um certo tom blasé); para a primeira viagem ao exterior ( na qual a inevitável experiência inicial de desorientação e constrangimento com gafes do idioma ficam encobertos); para a primeira experiência de trabalho ( em “ Like Wind Like wave”,2006, eu já contei a história sobre minha primeira aparição nos corredores do hospital vestido um jaleco branco de “ médico”, e não se trata de uma memória gloriosa...); para o primeiro dia na escola ( ansiedades de separação de intensidades variadas, crianças chorando, etc.); a lista poderia se estender, é claro, já que a vida é cheia de “ primeiras vezes repletas de tantos altos quanto baixos .

Na maioria das narrativas cotidianas, no entanto, muitas pessoas tendem a oficialmente reportar grande sucesso e confirmações positivas de suas próprias qualidades e habilidades inatas e incontestáveis: tudo muito “tranquilo”, tudo para além das dificuldades dos vários equivalentes de rituais de iniciação num clima de auto afirmação narcísica gloriosa que esconde e nega os temores essencialmente humanos e a natural incompetência dos novatos.

Outros, por outro lado, permanecem tragicamente ligados ao trauma do fracasso, sem nunca utilizar a rota de escape da negação sutil ou rejeição maníaca, e a partir deste momento eles se rearranjam afim de evitar totalmente qualquer possível repetição desta experiência: estes são de “ primeira e única vez”.

Alguns “ perdedores” estruturais, simples e tristemente se resignam à um destino de castração e exclusão, com a perda total do seu capital narcísico básico e uma séria consequência do seu sentimento de si mesmo; enquanto outros projetam seus próprios sentimentos de falta de valor para o mundo exterior: esta é a “síndrome da raposa e das uvas” na qual não haverá uma segunda vez, depois do primeiro esforço mal sucedido, porque o objeto ou a situação “ não valem à pena”.

Outros, finalmente, protegerão seus próprios narcisismos atribuindo suas falhas a mal intencionados perseguidores externos.

Em um contraponto a isto, e ainda falando em termos gerais, deve- se notar que as crenças populares concedem uma curiosa exceção para as óbvias desvantagens da inexperiência das “primeiras vezes”: este é o mito popular da chamada “ sorte de principiante”, na qual é creditado aos novatos, quando se tratando de apostas, onde é dado menos importância a habilidade com uma preponderância do fator acaso. Em suma, estamos no universo do pensamento mágico, e assim sendo, de regressão a modos um tanto primitivos do funcionamento psíquico.

É diferente no caso de indivíduos narcisisticamente “ auto confiantes “, sustentados por uma enorme fé em sim mesmos , que graças a um“ capital” básico positivo encaram os obstáculos inerentes as experiências de primeiras vezes com uma atitude genuinamente positiva , o que de fato facilita sua tarefa: eles podem realmente encarar as primeiras vezes sem o peso de fantasmas negativos, e isto permite que possam viver a experiência de uma forma mais serena e humanizada.

Entretanto, é uma experiência comum que na maioria dos casos verdadeiras “ primeiras vezes”, em qualquer âmbito da vida, não levam a um comportamento de “ estrela de cinema americano”: isto acontece, de fato, apenas em filmes: nestes os personagens se movem de forma estetizante, saltando de carros com uma expressão intensa, abandonando estes no meio da estrada com as portas abertas ( e ainda assim ninguém os rouba); eles confiantes em sem hesitar dirigem por cidades nas quais nunca estiveram, como se estivessem em casa; tentam coisas que nunca fizeram antes e obtém sucesso de primeira, abrindo novos horizontes e chegando a “momentos decisivos” de suas vidas, etc. etc.

Em suas perseguições acrobáticas em alta velocidade, 007 pula no primeiro carro ou salta na primeira motocicleta que encontra na rua e, sem hesitar, dirige com uma impressionante maestria; uma pessoa real, por outro lado, perderia um tempo considerável apenas para entender como dar a partida da moto, como engatar a marcha ré, e por ai vai.

As “primeiras vezes” destes personagens são falsas. Elas servem para criar uma ilusão narcisista para os espectadores, apoiando- se no princípio do prazer de que a onipotência é alcançável, e que o que se precisa fazer é acreditar e recobrar seu domínio.

Verdadeiras primeiras vezes, na maioria dos casos, são esboços, rascunhos, tentativas por acerto e erro que “ dão no que dão”; claro, a lenda conta que o Cimbaue identificou o grande artista na pequena Giotto, graças ao circulo perfeito que o pastor desenhou com giz em uma pedra, sem a necessidade de qualquer outra tentativa ou correção.

No entanto, historiadores de artes sabem muito bem que mesmo o melhor e mais experiente artista de qualquer era fazia correções, tão frequentemente, na verdade, que que o termo técnico “ pentimenti” ( cuja tradução literal é “ arrependimentos” em italiano), foi atribuído a este tipo de alteração.

A vida se trata de aprender, crescer, mudar, melhorar um pouco a cada vez, devagar, arduamente: esta é a verdadeira realidade, na maioria dos casos, para além das idealizações e das excitantes reviravoltas que gostaríamos de ver acontecer, como os antigos Romanos costumavam dizer, “ cito, tuto et iuncunde”: “rapidamente, com segurança, e alegremente”, como nas fábulas de antigamente e nos desenhos animados de hoje.

O mesmo é verdade- todos nós sabemos bem- para a análise, mesmo que após algumas sessões possa parecer como se o paciente tivesse substancial e definitivamente atingido um “ponto de virada” : no entanto, um progresso positivo e consistente é uma coisa, enquanto que uma mudança profunda, estável , estruturada e duradoura, como resultado de um verdadeiro processo de amadurecimento, é outra bem diferente. Na nossa realidade clínica, não há milagres e leva-se bastante tempo, paciência e trabalho para mudar uma pessoa.

E a Psychoanalysis. Today?

A primeira edição, a qual você está lendo agora, foi apelidado de “edição zero” para simbolizar sua natureza singularmente experimental.

Ela é, no entanto, uma espécie de nascimento, e isto nos anima e nos move, ainda que estejamos conscientes de suas limitações iniciais; os equivalentes parentais APsaA/NAPsaC, EPF, FEPAL, e IPA estão felizes e ansiosos para oferecer alimento, cuidado e apoio para este novo ser editorial, ajudando-lhe a se tornar uma publicação original, útil e que valha à pena, com o que esperamos que será uma vida longa e saudável daqui pra frente.

Ao mesmo tempo, sabemos que levará bastante tempo e muito trabalho para desenvolver e realmente consolida-lo. Estamos dando o ponta pé inicial com o que temos e sabemos, guiados por um forte desejo comum de apresentar as diferentes tendência psicanalíticas ao redor do mundo em uma forma direta e não convencional.

Todos nós que compomos o corpo executivo das organizações parceiras e os membros do Corpo Editorial trabalhamos duro para estabelecer a base para uma verdadeira e continua colaboração, que seja respeitosa com as especificidades regionais, mas também aberta a inovações.

Neste clima criativo, com esta “primeira vez”, Psychoanalysis.Today nasce, no sentido literal da palavra, determinada a crescer, se desenvolver e difundir largamente um pensamento psicanalítico contemporâneo .

Referências Bibliográficas

 

Bolognini,S. “ Todas as vezes que...: a repetição entre o passado, o presente, o futuro temido e o futuro potencial na experiência analítica”. Revista de Psicanalise da SPPA,13,2,307-324,2006

Bolognini,S. “ Like Wind,Like Wave”, Other press, New York,2006

 

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